No Brasil, milhões de crianças e adolescentes ainda trabalham. Muitas vezes, se arriscam em trabalhos pesados. A maioria, pela necessidade de ajudar os pais.
É madrugada. Na área rural de João Câmara, no Rio Grande do Norte, pequenos pontos de luz brilham na escuridão. Mais de perto dá para ver: são chamas acesas pelas famílias que não podem dormir.
Elas precisam trabalhar na melhor hora do sono. E são dezenas de pessoas: homens, mulheres com filhos, parentes e vizinhos. São operários de um ofício exaustivo, artesanal, tocado de forma rudimentar, quase primitiva.
A comunidade toda sobrevive do beneficiamento da castanha do caju. Em cada palhoça, é possível encontrar famílias inteiras trabalhando. Todo esforço é necessário porque eles ganham por produção. E, mesmo assim, trabalhando na madrugada escura, juntando toda a família, o rendimento é pequeno. É quase nada.
Dona Francisca do Nascimento quebra castanhas de caju desde os 12 anos de idade. Ela, o marido, o filho e um sobrinho formam uma unidade de produção.
Globo Repórter: Vocês ganham quanto por semana?
Francisca Barbosa do Nascimento, descascadora de castanhas: O máximo que a gente ganha é 100 contos, 90 reais, 110 conto, 120 é o máximo. É um sacrifício que não é pouco. É muito.
A parte mais perigosa é lidar com o fogo. Há dois anos, Carlos, que tem 18, encara a fumaça, as labaredas e o calor para torrar as castanhas que serão descascadas. É preciso muita atenção porque as castanhas soltam um óleo inflamável e as chamas aumentam de repente.
Globo Repórter: Já se queimou alguma vez?
Jovem: Já. Na mão, no braço.
Globo Repórter: É muito calor aqui perto?
Jovem: É quente.
Globo Repórter: Você lida quantas horas por dia com este fogo aqui?
Jovem: Sete horas, oito horas.
Globo Repórter: Você tem medo deste trabalho?
Jovem: Não. Tenho de viver disto aqui mesmo.
Depois de torrar, começa a função repetitiva de quebrar a casca da castanha. Eles trabalham sérios, em silêncio. Só se escuta o som das pequenas batidas do porrete nas castanhas.
As condições de trabalho são precárias. Lanternas e candeeiros trazem um pouco de luz para as mesas onde os trabalhadores batem os porretes bem pertinho dos dedos.
Das cascas torradas como carvão, é retirada uma amêndoa saborosa pra quem consome, mas que tem gosto amargo de exploração e de exclusão para os trabalhadores.
Quando o dia começa a clarear, por volta das 5h30, o expediente já começou faz tempo. Algumas famílias estão trabalhando desde as 2h. E é tanta fumaça que parece até uma neblina cobrindo toda a comunidade.
Mal dá pra ver as casas, no povoado envolto na fumaça espessa que vem de dezenas de palhoças de beneficiamento de castanha. A claridade revela a presença de pequenos trabalhadores.
Leandro, Alexandre e Taline. Os três filhos de Dona Ana Maria já nascem com o destino traçado. Taline é a mais nova, está com 14 anos. Ela tem as mãos manchadas da nódoa escura que sai da castanha.
Globo Repórter: O que você acha deste trabalho?
Menina: Não é muito legal não, mas é o jeito.
Globo Repórter: E como é que você acha que deveria ser a vida de uma garota de 14 anos?
Menina: Estudando, se divertindo.
A realidade é bem dura para as crianças e adolescentes que vivem em João Câmara. A equipe do Globo Repórter encontrou meninos e meninas tão pequenas que é preciso colocar tijolos debaixo das cadeiras pra que elas possam atingir a altura das mesas.
Globo Repórter: Quantos anos você tem?
Menino: Nove.
Globo Repórter: O que é pior pra você, mais difícil?
Menino: A preguiça.
Preguiça? Crianças em pé, ou em posição desconfortável em tábua e cadeiras velhas, durante horas, curvadas repetindo movimentos. No dicionário da família de Seu Gilvan do Nascimento, não existe a palavra preguiça. Ele e os três filhos trabalham 12 horas por dia.
Globo Repórter: Os seus filhos trabalham à partir de que idade?
Gilvan: Tudo começa de 14 anos em diante.
Globo Repórter: Estão todos fora da escola?
Gilvan: Tudinho, tudinho.
Todos os adultos que encontramos não estudaram e os jovens abandonaram a escola.
Na escola rural os reflexos do trabalho precoce são dramáticos. A maioria é de alunos pequenos. Os maiores começam a faltar e mais tarde abandonam por completo a sala de aula. E mesmo os mais novos já trazem as marcas do trabalho precoce.
Ele é bem pequeno. Tem só 8 anos de idade e a prova de que trabalha descascando a castanha de caju está nas mãos. Estão cheias de nódoas, estão descascando. E como ele lava as mãos com água sanitária para tirar a sujeira, a pele vai ficando bem fininha, até sem as impressões digitais. E, muitas vezes, vai cortando, vai ferindo a mãozinha.
Globo Repórter: E o que você faz?
Menino: Quebro e despelo.
Globo Repórter: Quantas horas por dia você trabalha?
Menino: Umas três.
Globo Repórter: E para limpar a mão, como é que você faz?
Menino: Eu boto água sanitária na bacia e esfrego.
Globo Repórter: E às vezes machuca a mão?
Menino: Corta
Crianças condenadas a repetir o destino dos pais. “O jovem daqui, muitos jovens não sabe ler. A assinatura ainda é assim, antigamente, assinando com as digitais”, afirma Selma Teixeira, diretora da escola.
E na família do Seu José Raimundo, são três gerações, descascando castanha para os atravessadores, ganhando apenas o suficiente pra sobreviver.
Globo Repórter: Quem da família trabalha aqui com o senhor?
José Raimundo da Silva, descascador de castanhas: Trabalham quatro filhos, seis netos e um genro.
O rosto coberto de suor é o da neta de 15 anos. A menina sofre com o calor. É dela a obrigação de manter o fogo para torrar as castanhas. E tem que mexer a panela pra não deixar queimar. O corpo miúdo sente o esforço. Respirar fumaça é quase inevitável e as pequenas queimaduras também.
Globo Repórter: Não é difícil para uma menina como você?
Menina: É difícil, mas a gente precisa.
Apesar do cansaço, Suziane não desistiu da escola, nem do sonho.
Globo Repórter: O que você espera do futuro?
Menina: Do futuro eu espero uma faculdade, trabalhar, sair desta vida. Meu sonho é cuidar de criança.
Reprodução Cidade News Itaú
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